Anonymous, o inimigo sem nome na era da guerra digital. |
Estamos em 1662, a prensa mecânica acaba de ser inventada na Europa (embora já existisse na Coréia a muito mais tempo) e autores de peças teatrais, escritores e músicos estão em perigo. Música, peças e romances tem existido desde a pré-história, mas até agora eles só estavam disponíveis diretamente na fonte, pagando-se um músico, uma equipe de teatro ou comprando um exemplar feito a mando do escritor por monges copistas (que copiavam, palavra por palavra, livros inteiros).
Do dia para a noite, qualquer um com uma prensa poderia reproduzir partituras musicais, peças de teatro e obras de literatura, vendê-las, ficar com todo o lucro e deixar o autor original a ver navios. Foi então que o rei Charles II da Inglaterra inventou o Copyright, criando a chamada "Lei de Anne", onde o autor deveria dar a um publicador o "direito de copiar" (copy right em inglês) sua obra, sendo que qualquer obra feita e vendida sem essa permissão do autor seria considerada ilegal.
Voltemos para os dias de hoje, em 2012. Desde o século XVII a briga entre empresas e autores detentores de direitos autorais e piratas vem se alastrando, das peças de Shakespeare copiadas a mão por dramaturgos de segunda categoria, escondidos no meio da platéia aos filmes de Hollywood filmados com câmeras de celular dentro dos cinemas, pouca coisa mudou no modo dos piratas agirem... porém se tornou muito mais fácil o acesso a material protegido por Copyright.
Sites de compartilhamento de arquivos, torrents e programas de destravamento de consoles se tornaram comuns e acessíveis a qualquer um. Ao mesmo tempo, as empresas estão usando seu poder financeiro para tentar esmagar e praticamente escravizar seus clientes através do lobby político e de projetos como o SOPA, PIPA, ACTA e outros. Mas o que realmente está acontecendo com nosso mundo e nossa internet? Há limites aceitáveis para a "pirataria"? Como evitar que produtos com copyright sejam copiados ilegalmente? Isso é realmente uma ameaça para o setor do entretenimento?
Se não fosse a Wikipédia, esta poderia ser a
imagem no seu computador hoje...
SOPA, PIPA e outras siglas:
O projeto do SOPA (Stop Online Piracy Act) foi engavetado pelo congresso americano semana passada diante dos protestos virtuais e reais contra as medidas propostas.
Sites como a Wikipédia sairam do ar durante um dia inteiro, apenas para dar um gostinho aos usuários de como seria o mundo se o SOPA passasse.
O PIPA (Protect IP Act), também engavetado pelo congresso dos EUA, provocou protestos nas redes sociais e nas ruas. Agora o ACTA (Anti-Counterfeit Trade Agreement) está criando um grande rebuliço na rede e em toda a Europa. Mas o que são estas propostas?
Teoricamente o PIPA e o SOPA são projetos "irmãos", criados para combater a pirataria na internet. Atualmente se uma empresa encontra material com Copyright em um site, por exemplo, ela deve passar por um processo jurídico e burocrático regulado pela justiça. Ela deve entrar em contato com o dono do site e pedir a retirada do material do ar. Caso haja resistência do site, a empresa deve entrar na justiça e processar o(s) dono(s) do site.
Digamos que o Blog do Gamer publique um vídeo com o trailer de um jogo da Capcom (material com copyright), a empresa não gosta e manda um e-mail para o dono do Blog pedindo que o vídeo seja retirado do post. Se eu tirar o vídeo, o problema acabou aqui. Caso eu me negue a fazê-lo ou não me pronuncie em um determinado tempo, a Capcom poderá entrar na justiça contra a minha pessoa.
Só que essa abordagem, do ponto de vista das empresas, leva muito tempo. Nem sempre se pode processar o dono do site, ou mesmo se encontra ele. Às vezes ele mora em um país onde a empresa não pode apelar para a justiça local (como é o caso do Piratebay, que muda seu domínio de hospedagem com certa regularidade para países cujas leis não permitem este tipo de processo), ou o site não tem nada a ver com o conteúdo, postado lá por terceiros (como é o caso do 4chan, que é apenas um site de fórums, não tendo responsabilidade com o que as pessoas falam ou postam lá).
Corporações contra o povo. Quem deve decidir as leis que
regem a sociedade?
Alguns sites como o Isohunt acabam por "enrolar" as empresas, anunciando que vão tirar o material do ar e nunca cumprindo a promessa por "falhas técnicas" ou "falta de pessoal".
O PIPA e o SOPA então colocariam nas mãos das empresas o poder de "passar a perna" na justiça, simplesmente culpando o site e tirando ele do ar nos EUA, sem direito de defesa por parte dos acusados.
O ACTA, atual motivo de controvérsia em todo o mundo, é maior, pior e mais perigoso. Enquanto os SOPA e o PIPA lidavam com censura da internet, dentro dos Estados Unidos, o ACTA lida com copyright em escala global.
Há algum tempo atrás, descobertas da ciência que podiam salvar vidas e melhorar o mundo eram consideradas, inclusive pelos descobridores, um bem da humanidade. Com o surgimento de grandes conglomerados farmacêuticos e bioquímicos nos anos 1940, estas descobertas passaram a ser vistas como propriedade intelectual de empresas. Empresas que querem lucrar muito colocando preços em suas descobertas.
ACTA: contra a saúde, alimentação e entretenimento em
defesa do dinheiro de corporações multimilionárias.
Novos remédios, sementes de plantas selecionadas geneticamente para serem mais produtivas, tratamentos médicos e substâncias laboratoriais tem sido registradas como copyright e mantidas guardadas atrás de sete chaves para o lucro das empresas que contrataram seus "descobridores". Governos como o do Brasil, que acreditam que a saúde e bem estar da população é mais importante que o lucro de empresas, tem sistematicamente infringido estes copyrights, permitindo que pequenas empresas locais e corporações estatais produzam os mesmos medicamentos, sementes e substâncias "genéricas", criando concorrência e obrigando as mega corporações detentoras do copyright a baixarem os preços para competir com estes genéricos.
O ACTA quer combater exatamente isto, criando um tratado de comércio que criminalize produtos que infrinjam copyright, mesmo se estes sejam importantes para a saúde e bem estar das pessoas. Sementes que podem ser plantadas no deserto e combater a fome nos países pobres? Propriedade de empresas como a Monsato, que pode colocar o preço que quiser sobre elas, uma vez que não podem ser produzidas por outras empresas. Remédios que podem parar o virus da AIDS, impedindo sua transmissão ou ação e salvando milhares de vidas? Não com o ACTA, que considera que o lucro das empresas farmacêuticas e o controle delas sobre sua distribuição e produção é mais importante.
Na esfera da internet, o ACTA, ciente da incapacidade de localizar e punir quem distribui conteúdo com copyright, resolveria o problema atacando a parte física da rede, os servidores de internet.
Suponhamos que você assina UOL e tem internet em casa através desta empresa. Um belo dia você resolve colocar um tapa-olho, papagaio no ombro e baixar um jogo pirata no Piratebay, por exemplo. Parabéns, o ACTA permitiria que o UOL fosse processado, provavelmente tirado do ar e tendo seus funcionários presos ou multados.
Diante disso, servidores (que não são muitos, quantos você conhece no seu país?) seriam obrigados a fiscalizar seus clientes o máximo possível, talvez até mesmo estipulando preços diferentes para cada tipo de cliente, como fazem os seguros. Na pior das hipóteses, clientes "suspeitos" poderiam ter toda a sua navegação (incluindo e-mails pessoais e serviços de mensagens instantâneas como MSN) vigiada em tempo real.
Megaupload e o abuso das corporações:
Aparentemente as propostas (ACTA, SOPA, PIPA...) são cruéis, mas legais (do ponto de vista de legalidade, não de serem divertidas). Se uma empresa emprega tempo, dinheiro, funcionários e recursos para criar algo, seja um remédio, seja um filme ou jogo, ela busca lucrar com isso. O capitalismo funciona assim, quem não gosta que se mude para a Coréia do Norte ou para Cuba.
Aparentemente.
Acontece que vivemos, na maioria dos países europeus e americanos, em uma sociedade democrática e temos direitos inalienáveis. O direito de decidir (ou de nomear representantes para decidir por nós, afinal deputados e senadores estão lá para isso... ou pensou que era só para se envolverem em escândalos de corrupção?) é um deles, e exatamente este está sendo jogado no chão pela ACTA.
Diferente do PIPA e do SOPA, que foram discutidos no congresso dos EUA, sobre a criação de leis nos EUA por congressistas (teoricamente) representantes do povo nos EUA, a ACTA está sendo negociada em segredo, por empresários, ministros (cargos indicados por presidentes, não eleitos pelo povo) e CEOs de grandes corporações, e terá um alcance global, afetando mais de 20 países diferentes.
Ou seja, temos aí uma lei internacional sendo imposta de maneira unilateral, sem consultar os interesses do povo, em contramão da democracia, e que abre um grave precedente para outras leis e propostas ainda piores surgirem e serem impostas de maneira absolutista.
Mas, mesmo se o SOPA e o PIPA tivessem sido aprovados e a ACTA fosse imposta, poderíamos confiar nas empresas, certo? Eles provavelmente não iriam se envolver em práticas abusivas ou manipular a sociedade para manter o controle sobre seus produtos, certo?
Errado
Mesmo com o engavetamento do SOPA e PIPA, a semana passada deu um gosto de quão longe as corporações estão dispostas a ir para manter seu poder. Você provavelmente já ouviu falar no Megaupload, não é? Aquele famoso serviço de armazenamento e transferência de arquivos na internet? Pois então, a notícia que correu o mundo foi de que a empresa Megaupload estava envolvida em esquemas de pirataria e lavagem de dinheiro, e seu dono, Kim Dotcom, foi preso na Nova Zelândia.
Pois então, o buraco é bem mais embaixo.
"Pirataria? Eu comi ela..."
Quem deu queixa sobre a pirataria envolvendo o site foi a Universal Music Group. No final de 2011, Kim Dotcom e o pessoal do Megaupload anunciaram que iriam iniciar um serviço de venda de música online, misto com um selo fonográfico. O Megabox, que teria parceiria com a loja virtual Amazon e várias outras empresas da internet, distribuiria música online gratuitamente, e em troca pagaria 90% do valor das músicas direto aos detentores dos direitos autorais, ou seja, os intérpretes (cantores) e compositores.
Isso seria um negócio da China para todos os lados. O serviço atrairia milhões de usuários no mundo todo (Música de graça e legalizada), os usuários em massa atrairiam indústrias de marketing interessadas em colocar propagandas no Megabox. Os artistas que criaram as músicas ganhariam 80% mais dinheiro do que ganham, por exemplo, gravando músicas pela Universal Music Group, e as gravadoras tradicionais iriam à falência, ou pelo menos seriam obrigadas a rever seus conceitos.
Muita gente não sabe, mas as gravadoras (assim como editoras de livros) repassam apenas uma pequena porcentagem (entre 1% e 10%) do lucro dos CDs e músicas vendidas para quem realmente as criou. Todo o resto fica com a gravadora, para pagar a produção física das mídias (CDs, DVDs, etc...), marketing, transporte e etc. Eliminando estes gastos, o Megabox inverteria essa equação.
Universal Music odeia concorrência. Ainda mais
quando a concorrência paga 80% a mais para os
artistas...
Nas palavras de Kim: "O Universal Music Group sabe que nós vamos competir com eles através de nossa nova empreitada chamada Megabox.com, que em breve vai permitir aos artistas a venda direta aos consumidores, enquanto mantém 90% do lucro."
"Nós temos uma solução chamada a Megakey (Megachave), que irá permitir aos artistas a receber lucro de usuários que baixarão músicas de graça. É isso mesmo, vamos pagar os artistas até mesmo por downloads gratuitos. O modelo de negócio da Megakey foi testada com mais de um milhão de usuários, e funciona!"
Desde os anos 1960 que gravadoras como a Universal tem mantido um controle da mídia musical que beira o crime organizado. Por conta de operações de trust e monopólios elas conseguiram impedir de publicar suas músicas vários artistas com opiniões políticas diferentes das dos seus presidentes, criado bandas "artificiais" que tocavam músicas de outros cantores, muitas vezes sem a autorização destes e investido pesadamente em marketing para turbinar as vendas de certos artistas, utilizando-se inclusive de subornos à radios e lojas (os famosos "jabás").
O Megabox permitiria a músicos iniciar suas carreiras com certeza de lucro e sem a coerção das gravadoras. Depois de ameaças a Kim Dotcom, veio bem a calhar dar queixa para o FBI e a Interpol a fim de evitar concorrência.
Einstein errou, a quarta guerra mundial não será disputada
com paus e pedras! Será com mouses e teclados...
A Terceira Guerra Mundial
A reação da sociedade civil, que está sendo chamada ironicamente de "Terceira Guerra Mundial" por ambos os lados, veio rapidamente. O grupo hacker Anonymous imediatamente tirou do ar os sites do governo americano, do FBI, de várias gravadoras e indústrias que apoiavam o SOPA, PIPA e/ou ACTA. Ao mesmo tempo os hackers reuniram o conteúdo do Megaupload e criaram um novo serviço idêntico, hospedado na Rússia, para as pessoas poderem reaver seus arquivos que estavam nos servidores da empresa.
Mas, por qual motivo a sociedade civil está contra estas leis, tecnicamente criadas para proteger os artistas e empresas de piratas e falsificadores? A melhor analogia que li para isso foi a do carteiro.
Imagine um carteiro. Um belo dia ele vai para o centro de distribuição dos Correios e pega sua mala cheia de cartas e pacotes. Ele não sabe, mas traficantes de drogas enviaram uma carta, para outra quadrilha de traficantes, propondo a invasão de uma favela. O carteiro faz seu trabalho, entrega as cartas e vai para casa. Os traficantes invadem a favela e matam centenas de pessoas. No outro dia a polícia prende o carteiro por Associação ao Crime ao ter entregue a carta.
Serviços de compartilhamento como o Megaupload, são como um carteiro, são drivers virtuais que podem armazenar informações e ser acessados de vários computadores. Alguém que trabalha em vários computadores diferentes (um no escritório, um em casa, um na biblioteca...) pode guardar seus dados nestes sites e acessá-los novamente sem a necessidade de carregar pen-drives ou HDs externos. O site não sabe o que foi guardado lá, e não quer saber, ele apenas aluga o espaço para a armazenagem.
O sujeito que compra um CD original ou uma música no site da gravadora e guarda ela em um desses serviços, digamos para ouvir tanto em casa quanto no trabalho, não está fazendo um crime, está? Do ponto de vista de gravadoras como a Universal, e de medidas como o SOPA, PIPA e ACTA, sim.
Rebecca Black: antes da internet ela nunca apareceria no
clip de uma popstar.
Com a popularização do computador e da internet, ficou muito fácil "copiar" algo. Copiar uma imagem nos anos 60 ou 70 envolveria equipamentos caros, gasto de materiais, mão de obra, pessoal... hoje basta clicar com o botão direito do mouse em qualquer figura e escolher a opção "Salvar Imagem Como...". Mesma coisa para músicas, vídeos, softwares e games. Imagine copiar um cartucho de Super Nintendo?!
A facilidade de copiar e divulgar mídia se tornou apavorante para as empresas que tinham (ou acreditavam ter) total domínio da cultura de massa nos anos 80 e 90. Hoje bandas e cantores que surgiram na internet (como a infame Rebecca Black que acabou em clipes da Kate Perry) são muito mais vistos e conhecidos do que os que foram cuidadosamente montados pela equipe de marketing e comunicação das gravadoras. Blogs e sites de compartilhamento rápido de informações (como o Twitter) são mais rápidos, eficazes e contam com mais confiança do que os jornais e revistas, mods e mapas "caseiros" de games, como o DotA, Team Fortress e Portal fazem mais sucesso que os jogos dos quais nasceram.
A sociedade recuperou sua capacidade de criar cultura, e a internet se tornou uma zona livre para as trocas culturais que antes tinham que ser mediadas por empresas e objetos físicos. Com isso a noção de direito autoral e copyright se tornou cada vez mais tênue.
MW3 Pirate Edition: Jogo que mais vendeu
também foi alvo de downloads ilegais
As empresas costumam fazer uma ligação direta entre pirataria e perda de vendas, seguindo a lógica de "se o cara conseguiu o produto de graça, ele não vai pagar para ter outro igual". É comum ouvirmos na TV "a indústria perdeu X dólares com a pirataria, pois Y de produtos custando Z dólares foram distribuidos de graça pela internet".
Olhando os fatos, a relação não parece ser tão direta assim. Em 1999, quando o Napster entrou no ar, distribuindo música gratuitamente pela internet, algumas bandas como o Metallica e artistas como Maddona viram suas vendas cairem, enquanto outros como Radiohead e Dispatch viram suas vendas dispararem como nunca na história. Será que, conhecendo o conteúdo das músicas e dos CDs, os consumidores foram capazes de escolher melhor, ignorando o forte apelo de marketing de artistas famosos e indo para músicas que realmente lhes interessaram?
A mesma coisa pode ser vista em relação aos games. Call of Duty Modern Warfare 3 bateu não só os records como produto de entretenimento mais vendido da história como também foi um dos mais pirateados do ano passado. Não teriam os consumidores que baixaram e gostaram do jogo, comprado o original ? Praticamente todos os jogos mais vendidos de 2011 também figuram na lista dos mais baixados ilegalmente...
Uma coisa que muitos esquecem é que ter acesso à mídia sem pagar por ela NÃO É coisa nova. Lembra antes da internet? Existiam rádios FM/AM (ainda existem...) que tocavam os últimos lançamentos em música. De graça, 24 horas por dia.
E como esquecer os filmes, "pela primeira vez na televisão brasileira", que passavam na TV apenas poucos meses depois de sairem dos cinemas. De graça.
Livros? Você podia ler eles de graça (e ainda pode) em qualquer biblioteca pública, e ainda levá-los para casa. Gratuitamente.
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